sábado, 20 de junho de 2020

A pandemia do eu


Em meio à pandemia e à crise econômica, imagens no mínimo curiosas levantam o debate entre os defensores do isolamento social: pessoas que se aglomeram para os mais diversos fins usando máscaras e as que tentam não se aglomerar mas não usam máscaras. Perguntas do tipo “a quarentena acabou?” ou “a curva está caindo?” ou ainda “o pior já passou?” ressoam a todo instante nas redes sociais e em algumas rodas de conversa.
Até pouco tempo atrás, eu estava inclinado a acreditar que a resposta para isso estava na necessidade das pessoas trabalharem ou na ideia de que são imunes ao vírus, o que inclusive é sempre acalentado pelo nosso senso humano de que determinado mal nunca acontecerá conosco. Acredito que a tensão política, a necessidade de pagar as contas e até a mídia podem ter um efeito anestésico sobre aqueles que de certo modo se sentiram seguros para sair de casa, seja pelo tédio ou pela necessidade.
O mais intrigante nesse momento, porém, são os que se aglomeram e não usam máscaras. Respeitando as limitações sociais de cada região, onde muita gente simplesmente não pode se isolar e não tem como comprar uma máscara, aqueles que podem e não fazem se sentem imunes? Conversando com algumas pessoas podemos entender que para muitos o isolamento social é um exagero e jogo político, que a doença não é tão séria. Confesso que é difícil entender racionalmente esse pensamento, mas tive uma luz assistindo o documentário “Coronavírus: a origem”, do National Geographic. Em determinado momento, falando sobre a reabertura que Wuhan vem promovendo, um entrevistado disse que os chineses estão saindo de casa, mas sempre de máscara e mantendo o distanciamento, porque eles entendem sua responsabilidade com os demais. Talvez, essa seja a chave para entendermos o que acontece com esse grupo que se aglomera sem nenhuma proteção.
Longe de uma discussão filosófica ou sociológica, se muito curiosa, e abusando do senso comum, ouso acreditar que a questão destas pessoas não seja a sensação de que nada de ruim vai lhe acontecer, e sim a falta de noção de responsabilidade com a sociedade. É uma parcela que desconsidera que por mais que eu eventualmente desenvolva a doença e fique tudo bem, ao transmitir para outra pessoa, o mesmo vírus pode ter um efeito mortal. “Se o outro ficar doente, a culpa é dele, eu respondo por mim” pode sintetizar este pensamento. A partir daí, talvez tenhamos outras discussões, como o “novo normal”, que aparentemente se manterá bastante velho.
Todos podem acreditar que isso é uma grande mentira da mídia, mas não podemos esquecer que vivemos em sociedade e nossas ações precisam ser pautadas no cuidado com todos e não apenas em nós mesmos. Em outras palavras: se a pandemia não é real e todos usarmos máscaras, o pior que vai acontecer é termos um bronzeado diferente no rosto, mas e se tudo for verdade e sairmos sem nenhum cuidado? Eu não sou capaz de pensar no melhor cenário, quem dirá no pior.
Se esta minha reflexão estiver correta, estamos vivendo plenamente um paradoxo: pessoas se encontram com outras porque são contrárias ao isolamento social mas ao fazerem isso demonstram que não se importam realmente com os demais, permanecendo, portanto, em seu próprio isolamento. São pessoas que julgam os orientais por supostamente consumirem sopa de morcegos mas que não se importam com a morte, as vezes indigna, de gente ao seu redor.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Conto bônus de Natal


Ao final de Dezembro, enquanto os adultos da casa estavam ocupados e estressados com o trabalho extra que lhes apareceu no final de ano, o pequeno Assuero estava muito animado pela vinda do Papai Noel a quem ele esperava ansiosamente o ano inteiro. Ele encheu a sala de sua casa com luzes coloridas, cozinhou um belo pedaço de pernil além de ter se vestido de branco para receber o seu convidado.

 Na noite prevista para a chegada do velhinho, Assuero abriu a janela da sala, deixou as luzes apagadas e se escondeu atrás de um armário. Quando escutou o barulho na janela, rapidamente saiu de seu esconderijo, acendeu as luzes e disse alegremente:

-Graças te dou Papai Noel! Eu sou Assuero, o filho mais velho da casa e a ti tenho esperado por todo o ano. Conforme ordenado pelos meus pais, eu fui um filho obediente, ajudei todos os meus colegas, fui um bom aluno e me arrependi de todas as coisas erradas que fiz. Agora te rogo que se assente na mesa, coma a comida que fiz em sua homenagem e dá-me o presente que mereço receber.

Muito impressionado com a forma que fora recebido, respondeu-lhe o Papai Noel:

-Meu filho, agradeço com sinceridade por esta recepção que fizeste para mim, contudo, teus pais não te ensinaram o correto. A pessoa a quem deves esperar nesta data não sou eu.

-Como assim? Meus pais sempre me diziam que se eu me comportasse o ano inteiro virias tu entrando pela janela e me daria um presente pelas boas obras que fiz durante esta data.

-Certamente eu apareço entrando pela janela e deixando um presente para as crianças boas, contudo, o presente que eu te darei é só uma lembrança que perecerá com o tempo e não é por minha causa que deves fazer boas ações. A pessoa que deves homenagear neste dia é muito superior a mim e ele te dará um presente que jamais perecerá, mesmo quando cresceres este presente ainda lhe será muito útil e até os seus pais e amigos serão beneficiados com aquilo que ele lhe entregar.

-De quem está falando? Quem é este de cuja honra eu devo me agradar? – Perguntou Assuero.

-Tu já deves ter ouvido falar dele. O seu nome é Puro e Justo. Ele tem chifres de carneiro e segura uma vara de pesca na mão direita. Ele tem poder de acalmar as feras e até um coração ferido ele pode curar.

-Meus pais gostaram de saber isso- Disse o pequeno animado- Obrigado Papai Noel!

Terminada a conversa, o velhinho entregou um presente ao garoto e também lhe deu uma bandeja que tinha desenhada em seu fundo dois peixes, depois ele se despediu e saiu pela janela.

Quando o dia amanheceu, os pais de Assuero desciam lentamente a escada que ligava o andar de cima da casa com a sala de estar, eles estavam sonolentos e desanimados até que se deparavam luzes em toda casa e um cheiro forte de comida fresca vindo da sala de jantar. Eles andaram em direção a sala de jantar e viram muita comida encima da mesa e envolta dela todos os seus filhos alegres e entusiasmados.

-O que aconteceu aqui? Vocês receberam o presente do Papai Noel? – Perguntou o pai.

-Muito melhor do que isso! – Disse Assuero – Eu vou contar-lhes tudo o que aconteceu esta noite – E o garoto contou tudo o que tinha ouvido do Papai Noel – E vejam o que ele me deu – E mostrou-lhes a bandeja que ganhara junto com o presente.

Os adultos olharam a bandeja fixamente e por um momento se sentiram envergonhados. Tinham ensinado as crianças a se comportar bem e esperar pela pessoa errada. Eles se entreolharam espantados, mas depois soltaram um leve sorriso.

-Crianças, vocês estão certas! Vamos celebrar corretamente este dia. Alegremo-nos e regozijemo-nos neles! – Disse a mãe que foi respondida com um abraço feliz dos filhos e de seu afinal.

Afinal, havia mesmo o que se comemorar. Os adultos finalmente se lembraram de que aquele dia era Natal.

História natalina do Douglas
 
 


sexta-feira, 22 de abril de 2016

O caso do anel de família




A vantagem de se trabalhar em casa era não ter que acordar cedo, encarar o trânsito louco de São Paulo e já chegar tão cansado no serviço como se tivesse acabado de sair dele. A parte ruim disso, bem, talvez fosse justamente a casa... Todos os detalhes insignificantes para qualquer um torna-se interessantíssimo aos olhos de alguém que precisa se concentrar em seus afazeres profissionais, como a abelha sobrevoando uma flor na janela da vizinha ou o barulho característico de uma geladeira irrompendo o silêncio. Embora essa fosse uma verdade inquestionável, Thales preocupava-se que o real motivo de sua desatenção fosse justamente a falta de trabalho. Detetive particular não era exatamente um profissional tão solicitado assim, principalmente alguém novo, com um óculos preto, quadrado e grosso combinando com uma barba por fazer, no melhor perfil nerd. Mas o que lhe atrapalhava mesmo era nunca ter tido um primeiro caso a resolver. Claro, para tudo na vida tem uma primeira vez, mas como ganhar experiência se ninguém lhe dar oportunidade? Esse mundo era muito injusto, ele pensava, até porque o fato de nunca ter atuado como detetive não lhe tirava a habilidade adquirida ao longo de uma vida lendo as histórias de Hercule Poirot, de quem aliás era um grande fã. Talvez o erro tenha sido anunciar seus serviços na internet, devia ter feito um lobby com alguém para indicá-lo, mas quem sai por ai espalhando aos quatro ventos que precisa de um detetive?

Imerso em seus pensamentos, se assustou quando o celular tocou. O número era desconhecido, mas atendeu prontamente.

- Oi? Alô?

- Oi, é... Estou ligando por conta do anúncio na internet... – disse uma voz feminina aparentando timidez.

- Pois não, aqui é o detetive Thales Mestre falando. Como posso ajudá-la?

- Bem, será que podemos nos encontrar em algum lugar para conversar?

- Sim, claro! Onde você está? Ah, sim, conheço. Pode deixar, em uma hora estarei ai. – Thales desligou e imediatamente saiu eufórico para trocar de camiseta enquanto passava um desodorante e tentava alinhar o cabelo com os dedos.

Na hora combinada ele chegou na lanchonete indicada pela cliente. Mas um detalhe praticamente irrelevante até agora passou a ter uma importância monumental nesse instante. Qual era o nome dela? O entusiasmo da ligação não lhe permitiu lembrar dessa pergunta básica, e agora, parado na porta, sem saber a quem procurar, prometeu a si mesmo perguntar o nome da mulher assim que a encontrasse.

- Senhor Thales? – uma voz acanhada falou atrás dele.

- Sim, sim. Sou eu. – respondeu virando-se. Em um milésimo de segundo observou a pessoa a sua frente: uma moça frágil, loira, com cabelo um pouco mais para baixo do ombro e uma pele absurdamente branca.

- Prazer, eu sou a Clarissa.

- Clarissa! Esse é o seu nome. Claro, o prazer é todo meu. Vamos sentar?

Acomodaram-se em uma mesa no fundo da lanchonete, que era razoavelmente grande mas tinha apenas uma meia-dúzia de clientes àquela hora da tarde, talvez porque as pessoas estivessem trabalhando, muito embora fosse exatamente isso o que estava Thales fazia ali.

- Bem, então o senhor tem bastante experiência nesse tipo de serviço? – Clarissa perguntou.

Quase se engasgando com o café, Thales disse um sim que pouco lhe convenceu, mas foi o suficiente para a garota.

- Preciso de sua ajuda para salvar a minha família.

- Salvar sua família? Como assim? – questionou inclinando-se um pouco para a frente.

- Primeiro quero sua total discrição. Esse assunto não pode vazar de forma alguma.

- Pode ficar tranquila.

Clarissa iniciou a narrativa com um profundo suspiro. – Minha família é muito rica e sempre sai na mídia, por isso esse assunto é extremamente delicado. Minha mãe tem um anel que pertenceu à minha avó e é valiosíssimo, de diamante azul. E ele foi roubado. – seu tom de voz diminuiu consideravelmente nesta frase final.

- Roubado? – Thales perguntou imitando a mesma a entonação dela.

- Na verdade não foi bem roubado, foi furtado...

As sobrancelhas dançando no rosto de Thales pediam que ela continuasse com a explicação.

- Na segunda à noite meus pais iam a uma festa e minha mãe foi pegá-lo, mas ele tinha sumido.

- E como vocês sabem que ele foi furtado e não simplesmente perdido?

- Ela tinha muito cuidado com o anel, além de ser uma joia de família, é muito valiosa. Deve custar uns vinte. – falou tentando disfarçar.

- Vinte mil? – Thales perguntou com os olhos arregalados.

- Não! – ela inclinou-se sobre a mesa e cochichou – vinte milhões de reais.

Ele não teve reação. Não acreditava ter ouvido essa quantia. Parecia ter ficado em estado de choque por um instante.

- Agora ela quer descobrir quem foi antes de chamar a polícia, para não ter nenhum escândalo.

- Mas furtar, principalmente algo tão valioso assim, é uma coisa comum. Uma hora a polícia tem que ser acionada.

- Sim, acontece que foi alguém da minha casa.

- Como assim?

- Veja, minha mãe garante que o anel estava na caixa de joias poucos minutos antes de perceber o sumiço. E nesse tempo ninguém entrou e nem saiu de casa.

- Compreendo... – Thales não compreendia bem, é verdade, mas precisava passar credibilidade.

- Como ninguém tem provas de nada e nem acharam o anel, estão todos desconfiando de todos. Está um verdadeiro clima de guerra lá.

- Me perdoe, mas e a senhora? Ninguém suspeita de você?

- Eu estava viajando – respondeu com dignidade – cheguei de Buenos Aires ontem.

- E a ideia de procurar um detetive particular?

- Foi minha. O clima está péssimo lá, além de que minha mãe concorda que é imprescindível resolvermos essa questão dentro de casa, senão a reputação da família estaria abalada...

- Compreendo – Dessa vez Thales realmente começava a compreender algo. – Talvez eu devesse conversar com ela pessoalmente.

- Sim, ela já nos espera. Sabia que pediria para falar com ela.

Os dois saíram da lanchonete e pegaram um táxi em direção à casa de Clarissa. Chegaram em uma cobertura no bairro de Vila Mariana, o que fez reascender os cifrões nos olhos do jovem detetive.

Foram recepcionados por Tereza, uma senhora séria, loira, sem dúvidas com mais de cinquenta anos, mas sendo impossível calcular sua idade exata devido a quantidade de Botox segurando seu rosto.

- Mamãe, esse é o Thales Mestre. Ele quem vai nos ajudar naquela questão.

- Imaginava alguém mais velho. – respondeu a senhora sem meias palavras. – mas tudo bem, sendo competente já é o bastante.

Os três entraram e sentaram – se no sofá que contornava toda a sala que por sua vez era maior que o apartamento inteiro de Thales.

- Hum. Vejamos, senhora...

- Tereza. – respondeu sem paciência.

- Tereza, senhora Tereza. Bem, quando foi a última vez que viu o anel?

- Na segunda a tarde, pouco antes de tomar banho, devia ser umas seis horas.  Passei na penteadeira quando fui ao banheiro e vi algumas joias na caixa, inclusive o anel de cristal.

- E percebeu que ele havia sumido em seguida?

- Assim que sai do banho e coloquei as roupas, quando fui pegá-lo não estava mais lá.

- E quanto tempo se passou nesse intervalo?

- O banho, você diz? Deve ter durado uns quinze minutos.

- Então a senhora acredita que alguém entrou em seu quarto nesse período e roubou a joia.

- Sem dúvidas!

- E quem estava na casa?

- Meu marido Luciano, minha sobrinha Lívia e a empregada Mariana.

- E acredita que algum deles tenha motivos para roubar o anel?

- Olha – Tereza falou abaixando a voz como se não quisesse que alguém escutasse – a Mariana, minha empregada, não é de confiança. Fora que ela é a única realmente capaz de fazer isso, não é? Minha família não é dessa laia.

Entendendo a conotação que ela queria dar àquela fala, Thales cuidadosamente prosseguiu:

- Mas a senhora acredita que ela tenha algum motivo real para querer fazer isso?

- Veja, ela está conosco a pouco tempo, não tem nem um mês, foi enviada pela agência. Parece que chegou outro dia do nordeste e o pai está doente.  Então todo dinheiro que ganha é muito bem vindo.

- E a senhora percebeu algo estranho, ou diferente em seu quarto ou no comportamento da empregada depois do episódio?

Pensando um pouco, Tereza logo respondeu:

- Não, nada anormal que eu lembre, a não ser é claro, a ausência do anel. Fora que comecei a gritar desesperada e não prestei atenção em mais nada.

- Ah, entrou em choque?

- Como?

- Digo, se desesperou.

- Mas é claro, você sabe quanto vale aquele anel?

- Sei sim... – respondeu Thales suspirando.

- E o valor sentimental? Eu herdei ele de minha mãe. É muito especial pra mim.

- Hum... Voltando ao momento do incidente, imagino que alguém tenha ido te socorrer ao ouvir os gritos.

- Sim, o meu marido. Na verdade todo mundo entrou no quarto.

- E seu esposo, está aqui? Será que posso conversar com ele?

- Claro. Querida, vá chama-lo, por favor. – disse dirigindo-se a Clarissa.

Thales e Luciano foram conversar na varanda da casa, com uma vista privilegiada da cidade. O senhor de seus sessenta anos e alguns fios de cabelo na cabeça não conseguia disfarçar o nervosismo. O assunto o abalara grandemente.

- Senhor, desculpe-me mas preciso perguntar. Onde estava na segunda entre as dezoito horas e dezoito e quinze?

- Eu estava lá fora, o carro estava na rua e começou a chover. Como íamos sair, desci para coloca-lo na garagem, assim Tereza não se molharia.

- Mas quando ela começou a gritar você já estava aqui.

- Sim, tinha acabado de chegar, estava limpando a lama dos sapatos.

- E percebeu algo estranho antes ou depois do roubo?

- Estranho? O roubo é estranho! – aproximou-se de Thales, tentando estabelecer alguma intimidade com ele. – Escuta, a minha empresa está com muitos problemas financeiros, a gente não pode ter a imagem abalada por uma situação dessas... em família ainda por cima!

- Tudo bem, seu Luciano. Ninguém ficará sabendo disso.

Depois da conversa, Thales foi em direção à sala, mas deteve-se ao perceber que Clarissa conversava com a mãe. Ficou atrás da parede do corredor tentando ouvir o que as duas falavam.

- Mamãe, a senhora tem certeza de que não lembra de nada? É importantíssimo que diga tudo o que sabe para resolvermos logo tudo isso, da forma mais discreta possível.

- Não tem nada, filha. Só o anel que primeiro estava na caixa e depois não estava mais. Tudo estava no lugar, não tinha nada faltando. A única coisa estranha que percebi foi um cheiro de rosas quando sai do banho, mas com certeza foi impressão, devia ser algum sabonete que usei.

- Mas a senhora não acredita mesmo que tenha sido o papai, não é?

- Não sei, Clara. Essas dívidas que a empresa tem são uma tortura. O conselho está quase tirando ele da presidência. Fora que não seria a primeira vez que ele me engana. – cortou a frase abruptamente como se não quisesse que a filha soubesse da história. Nesse momento Thales aproveitou e entrou.

- Bem, gostaria de conversar com sua sobrinha e a empregada, se possível.

- Agora não será. Elas não estão em casa. Mas pode retornar amanhã de manhã.

- Ah sim, claro. Nesse caso, boa noite.

Enquanto voltava para casa, em um ônibus lotado, tentava pensar em algo. Mas não conseguia, o aperto e o fedor de suor das pessoas não permitiam que seu cérebro trabalhasse adequadamente. Foi só ao descer e começar a caminhar que pode colocar as ideias em ordem. A viagem de mais de duas horas até sua casa o fez refletir sobre a necessidade de se mudar para o centro afim de facilitar o transporte, mas isso dependeria do sucesso dessa investigação.

Seu caminho havia um cemitério, onde ele sempre parava e ficava observando a movimentação. Naquele dia parou para pensar no caso e encostou em um poste de frente a entrada do cemitério de onde observou uma moça levar algumas flores à uma lápide. Então começou a tentar organizar o emaranhado de informações de mais cedo.

Uma família em crise financeira, que adora viver das aparências. Um anel de vinte milhões com certeza viria muito a calhar. O marido teria todos os motivos para pegar o anel, e segundo a esposa ele seria capaz disso. Ele, por sua vez, parecia desesperado com a situação, se descobrissem que ele pegou a joia sua carreira estaria arruinada. Mas... se a esposa acha que foi ele, por que quer tanto colocar a culpa na empregada? Com esse quebra-cabeça na mente Thales chegou feliz da vida em casa, louco para solucionar seu primeiro mistério.

Na manhã seguinte ele estava tocando a campainha da casa de Clarissa e foi recebido por uma moça de no máximo 1,60 de altura, magrinha e com os cabelos negros.

- Pois não?

- Bom dia, gostaria de falar com a dona Tereza.

Mal havia acabado de falar, ela própria apareceu atrás da menina e pediu que ele entrasse.

- Mariana, esse é o detetive Thales. Thales, essa é Mariana, nossa empregada.

- Ah sim, será que podemos conversar?

A moça olhou para a patroa como se pedisse autorização e obteve um aceno positivo com a cabeça. Os dois dirigiram-se à sala de jantar.

- Você é a Mariana, então.

- Sim senhor.

- Está a muito tempo aqui?

- Não, só a uns quarenta dias. Vim de Pernambuco.

- E tem algum parente em São Paulo?

- Não senhor. Precisei vir porque meu pai está muito doente e não temos dinheiro para o tratamento. Vim trabalhar para ajudar.

- Então todo o dinheiro que ganha aqui vai para ele?

- Quase tudo. Também estou juntando para o meu casamento.

- Você vai casar?

- Vou sim. Meu noivo está em Pernambuco cuidando das coisas.

- E sobre o anel. Já o tinha visto antes?

- Só uma vez, nas mãos da dona Tereza.

- E o que estava fazendo no momento em que ele desapareceu?

- Ah, bem... Não tenho certeza, devia estar na cozinha preparando o jantar.

- Mas eles não iriam sair?

- Sim, mas a menina, Lívia, ia ficar em casa.

- Ah, claro. Então não tem certeza de onde estava?

- Não, só lembro de ouvir a dona Tereza gritando no quarto.

- Hum, e você acredita que alguém daqui de dentro pode ter roubado?

- Não sei, senhor...

- Para terminar, sabe onde o Luciano estava no momento?

Depois de pensar um pouco respondeu:

- Acredito que estava na chuva pois lembro de vê-lo chegar com o sapato todo sujo pouco tempo antes de ouvir a dona Tereza...

- Ok, era só isso que eu precisava. Obrigado.

 A simplicidade da moça chegou a comovê-lo, mas a imparcialidade precisava ser seu lema de trabalho. A próxima pessoa a entrevistar, a única que faltava, era a sobrinha de Tereza, Lívia. Ao entrar na sala ela trouxe junto sua jovialidade impressa tanto na aparência como no sorriso. Por um momento Thales pensou já tê-la visto em algum lugar. Não parecia abalada com os acontecimentos recentes.

- Então você que está investigando o caso? Não querem mesmo chamar a polícia, hein.

- A senhora não parece muito preocupada com o assunto.

- Primeiro, senhora não, sou mais nova que você – ela deve ter imaginado como rosto dele ficaria corado – e segundo, por que estaria preocupada? Eu não peguei nada, muito pelo contrário, acho até que ninguém o tenha pego.

- Como assim?

- Deve ser caso da minha tia que está querendo pagar as dívidas da família e manter a vida de dondoca que tem.

- Por que fala assim?

- Porque acho que é isso. Quem aqui dentro ia querer aquele anel? A Clarissa estava viajando e mesmo assim era a herdeira natural, então não teria motivos para roubá-lo e a empregada parece ser honesta demais pra fazer uma coisa dessas.

- E o seu tio?

- Bem, sobra ele e minha tia. Acho que os dois teriam coragem de fazer de conta que o anel sumiu, mas minha tia tem mais caráter de quem faz uma coisa dessas.

- O que você quer dizer com isso?

- Ah, deixa pra lá. É uma longa história. Ela e minha mãe não se gostavam. Tia Tereza era mais nova e mesmo assim minha avó sempre a tratou melhor, como sua favorita.

- E presumo que você não more aqui.

- Não mesmo, sou de Mato Grosso, mas vim passar um tempo aqui a convite da Clarissa. Ela queria que nossa família voltasse a ser unida.

- E quando chegou?

- Semana passada. Fico mais uns quinze dias. Quer dizer, o plano era esse, mas agora talvez eu vá antes. Com essa situação toda está muito chato ficar aqui.

- Sua prima Clarissa estava viajando. Por que você mesmo assim ficou aqui se foi ela quem te convidou?

- Ela ficou só três dias na Argentina a trabalho. Fora que acreditava que essa era uma ótima oportunidade para me aproximar de minha tia.

- E sua mãe, onde está?

- Em Mato Grosso. Depois que saiu de São Paulo a muitos anos, foi morar lá.

- E tem falado com ela?

- Às vezes sim.

- Bem, dona Lívia, quer dizer, Lívia, na segunda-feira, onde estava entre as 18:00 e as 18:15?

- No quarto, na internet.

- Ok, agradeço sua atenção.

Ao levantar-se, Thales foi até Clarissa e pediu para andar um pouco pela casa, o que foi prontamente autorizado por ela. Ele passou no quarto de Tereza de onde o anel foi tirado, passou pelos perfumes e o closet de sapatos dela, viu o corredor que o ligava ao quarto de Clarissa, com tudo aparentemente normal. Entrou no quarto de hóspedes, ocupado por Lívia, onde na cama havia alguns vestidos que pareciam ter acabado de sair da mala e dois frascos de perfumes, um de rosas e outro neutro. Em seguida foi à cozinha, onde Mariana preparava o almoço e por fim na lavanderia, onde viu que os empregados aparentemente não conseguiam manter tudo em ordem, já que um sapato masculino estava todo sujo de lama seca no canto, provavelmente o mesmo que Luciano usara na segunda-feira.

- Tudo bem, Thales? – Clarissa perguntou ao agora pensativo detetive.

- Tudo sim. – respondeu voltando à realidade. – acho que esse caso já está resolvido.

- Sério?

- Sim, mas preciso dar uma saída. Daqui a pouco estou de volta.

- Estamos te aguardando!

Thales estava mergulhado em suas ideias. A mulher tinha problemas com dívidas do marido, o marido tinha uma carreira em jogo, a empregada tem um pai doente. Os três tinham motivos para querer o anel, mas uma peça ainda não se encaixava nesse quebra-cabeça, e cruzou a cidade mais uma vez para tentar pensar... Foi até sua casa e no caminho passou no cemitério, foi olhar o movimento, mas dessa vez, no lado de dentro.

Ao voltar à casa de Tereza, encontrou ela, o marido, a filha e a sobrinha na sala. Pediu que chamassem Mariana, o que foi prontamente atendido.

- Quando Clarissa me contou o que ocorreu confesso que fiquei um pouco receoso – por inexperiência, diga-se de passagem – mas quando conversei com vocês tive a certeza de que havia muito mais coisas envolvidas do que um simples roubo de anel. Não foi Tereza quem inventou tudo isso, com certeza, ela crê veemente que o marido está por trás do roubo.

- O que? – Luciano exclamou, ao passo que a esposa só pode se acanhar na cadeira.

- Mas ela tem razão de desconfiar, não é mesmo Luciano? Sua empresa está com dívidas e você pode perder o cargo a qualquer momento. Aparentemente você já aprontou alguma coisa no passado que fez sua esposa perder a confiança em você. O que te salvou, porém, foi a chuva. Mariana te viu entrando no horário que me disse e o seu sapato, a propósito, está sujo até agora. Por isso temos certeza de que não foi você. Além do mais sua esposa tem muita lealdade ao status. Não quer ver o marido envolvido em um escândalo desses, por isso levantou a hipótese de Mariana, a empregada pobre do nordeste com um pai doente e um noivo esperando casamento, ter roubado o anel. Ela tem o motivo e não tem provas que a defendam...

- Então, ela é a ladra mesmo!  - gritou Tereza.

- Calma, senhora. O fato de ela não ter provas que a defendam não a torna culpada, principalmente porque ela não é!

- E quem é então? – Perguntou a agoniada Clarissa.

- Sua prima, Lívia. – respondeu Thales com uma voz firme.

Todos olharam espantados para ela que tentou se defender:

- Você está louco! Isso não existe. Não vou com a cara da minha tia mas isso não me transforma em uma criminosa.

- Pode ser que não seja por isso, mas a senhora é uma criminosa sim. Sua preocupação excessiva em culpar alguém logo me chamou a atenção. Parecia que queria de todas as formas incriminar sua tia. Parecia que você nutria um ódio secreto por ela, o que você mesma confirmou ao dizer que nunca se deram bem. Pode começar contando quando sua mãe morreu.

- O que? Ela morreu? Mas você não disse que ela estava no Mato Grosso? – Luciano perguntou.

- Não sei do que ele está falando.

- Sabe sim. Quando conversamos, tive a impressão de que já nos conhecíamos de algum lugar e não lembrava de onde. Depois caiu a ficha, havia te visto ontem no cemitério, perto da minha casa, no outro lado da cidade, o lado que ninguém dessa casa frequenta. Hoje voltei lá e encontrei uma lápide com a foto de uma mulher muito parecida com você e uma mensagem assinada por sua filha Lívia.

Ela não conseguiu segurar o choro e confessou:

- É verdade. Minha mãe morreu a um ano e desde então eu prometi que iria vingar a vida que tivemos. Você, tia Tereza, ficou com toda a parte boa do que pertenceria à minha mãe, inclusive aquele anel, por isso que roubei ele.

- Duas coisas me abriram os olhos para esse caso – prosseguiu Thales – primeiro ela me disse que Tereza era a irmã mais nova e a preferida da mãe, só que o anel em questão era uma herança de família costumeiramente passada aos filhos mais velhos, o que claramente não aconteceu e provocou diversas brigas em família. Quando a mãe morreu, Lívia decidiu se vingar por ela, pegando justamente o símbolo dessa mágoa, o anel.
 “Outra coisa importante nessa história foi o detalhe quase imperceptível de que Tereza sentiu um aroma de rosas quando saiu do banho, um aroma diferente no normal naquele quarto e um dos perfumes de Lívia é justamente de rosas, o que mostra que ela poderia ter ido até o quarto, pegado o anel e saído, ficando a fragrância por um certo tempo.

- Não acredito que você foi capaz de fazer isso! – disse Clarissa incrédula – e nossas conversas pela internet? Você dizia que queria se reconciliar com a família!

- Era mentira! Eu só queria me aproximar de vocês e ter a oportunidade de limpar a honra da minha mãe!

- E o que fez com o anel? – perguntou Luciano.

- Escondi, ele é meu por direito.

Tereza avançou sobre a sobrinha mas foi contida pelos homens no ambiente, que seguraram Lívia até a chegada da polícia.



De volta para casa, sem passar no cemitério, Thales estava feliz da vida com seu primeiro caso solucionado e um cheque bem gordo nas mãos. Agora já podia se considerar um detetive de verdade. Mas o que lhe deixava ainda mais animado era o pagamento que trazia. Tudo bem que achou muito pouco em comparação com os vinte milhões que ajudou a salvar, mas essa era uma questão que ele melhoraria nos próximos casos. A única coisa que ainda não tinha conseguido desvendar era porque aquela família decidiu chamar a polícia no final se não queriam publicidade? A resposta veio em seguida, ao abrir uma página de notícias na internet: “Famosa família de São Paulo é vítima de golpe”. Pois bem, pensou ele, talvez não seja uma notícia tão ruim para os negócios.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O baile de debutantes

Isabela mal aguentava tanta ansiedade pelo grande dia. Sábado estava chegando e com ele a tão aguardada festa de quinze anos. Ela própria se encarregou de todos os preparativos: alugou o salão, comprou os enfeites, contratou a doceira para fazer o bolo, sua tia faria os salgados, pagou uma fortuna pela presença de um dj famoso e mandou fazer um vestido especialmente para essa data.

Em casa, não se falava de outra coisa, se tivesse qualquer assunto a ser discutido tinha que esperar até a próxima semana, enquanto isso o cachorro passava fome, o carro ficava parado na garagem por falta de gasolina, o lixo permanecia dentro de casa, o quintal continuava com as folhas secas trazidas pelo vento. O pai da aniversariante estava preocupado, pensava se era normal tamanha agitação, mas acabou considerando o comportamento “razoável” e que deveria apoiá-la na realização desse sonho.

A irmã de Isabela achava aquilo uma afronta. Onde já se viu, em pleno século 21 fazer todo esse escândalo por uma festa de quinze anos. Não conformada, se recusava a ajudar a irmã nos preparativos. Se ela fazia questão da palhaçada, que se responsabilizasse sozinha.

Na quinta-feira que antecedia a festa, Yasmin e Isabela foram à loja pegar o vestido encomendado. Mãe e filha ficaram horas em frente ao espelho, ajustando aqui, dando um ponto ali, pregando acolá. A costureira tinha outras clientes, é verdade, mas aquelas lhe tomavam toda uma vida com insatisfações. “Por que não fizeram elas mesmas?”, pensava enquanto entre sorrisos fazia os caprichos das duas.

Tadeu, sozinho em casa, esperando a esposa e a filha voltarem da costureira, se viu perplexo ao atender a campainha e ter que receber uma encomenda em nome de Isabella: um pônei. Sua cara de estupefato combinava com a do entregador que levara o animal em um caminhão adaptado mas que agora transferia a responsabilidade para o senhor congelado a sua frente. Claro que passou pela cabeça dele não aceitar o agrado que a debutante se deu, mas considerou que isso poderia traumatiza-la ainda mais, então decidiu acomodar o novo mascote da família na cozinha. Para sua sorte ele não estava com fome e dormiu feito um bebê entre a mesa e o fogão.

Dona Carosinha, a vovó, entrou em pânico quando entrou pela porta dos fundos (ela morava na casa de trás) para pegar um punhado de açúcar e se deparou com um cavalo deitado na casa da filha. Gritou como se estivesse sendo esfaqueada, assustou o Tadeu e o pônei, que no reflexo deu um coice na velha e virou a mesa de ponta cabeça. Ao chegar no local, Tadeu já conformado com a morte da sogra se surpreendeu ao vê-la montada no bicho enquanto este corria pelo quintal. “Muitos anos de vaqueira, caboclo!” gritava ao genro em estado de choque que a observava.

Chegando em casa, Yasmin e Isabella foram recebidas por um marido/pai estressado, que reclamando de enxaqueca foi logo se deitar, e uma vovó arretada, acariciando o pônei que dormia sobre o sofá da sala. “Escuta, vocês vão construir um estábulo aqui, por acaso?” Isabella disse que não, era apenas até a sábado para a entrada na festa, depois passaria ele para frente.

E de tanto esperar, sábado chegou. Yasmin estava encantadora, mas Isabella ofuscava qualquer uma. Não havia quem dissesse que a festa não fosse dela. Sua entrada montando aquele “pequeno cavalo”, como a mãe se referia, levou os convidados ao delírio. O momento da valsa, então, foi encantador. Tadeu a encaminhou segurando-a pela mão e de forma atrapalhada movia os pés de um lado a outro.

Carosinha, que se concentrou nas comidas da festa, ao ir até o banheiro, ouviu um ruído. Procurou um pouco mas logo encontrou a origem: vinha da escada, Yasmin estava chorando. “Minha filha, o que está acontecendo? Por que não está aproveitando a sua festa?”. Com os olhos marejados e quase soluçando, a neta respondeu: “Minha festa, vó? A mamãe fez tudo pra ela! Eu que faço quinze anos e ela com cinquenta quis ser a rainha, até um cavalo trouxe pra cá!”. Sem ter muito o que dizer, Carosinha finalizou: “Sua mãe sempre foi um problema, nunca soube superar os próprios traumas, mesmo que para isso traumatize a filha.”

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Onde ele está? - O Paciente

Já passava das dez da noite quando o celular de Estevão começou a tocar pela quinta vez. Ele nem desviava o olhar do email que estava escrevendo para um cliente, apenas levou uma das mãos ao smartphone e deslizou o botão vermelho. O tempo ia passando e o trabalho parecia que só aumentava. Agora que foi promovido a diretor de uma refinaria de petróleo precisava se dedicar quase que integralmente à empresa. Meia-noite finalmente ele decidiu sucumbir ao cansaço e ir para casa. Vestiu o paletó que estava na cadeira, desligou o computador, pegou a chave do carro, a carteira e o celular e foi caminhando pelo andar vazio, escuro e frio. Ao chegar no elevador foi ver quem havia ligado. Era sua esposa. Ao todo foram doze ligações nas últimas três horas. “O que ela queria? Não sabia que estava trabalhando?”. Irritado decidiu ligar de volta e se surpreendeu quando no primeiro toque Luiza atendeu.

- Onde você está? Tentei te ligar milhares de vezes.

- Você sabe que estava trabalhando. Precisa aprender a controlar seus ciúmes.

- Ciúmes? Eu não estou nem aí para o seu trabalho. Queria falar com você por causa do Kauã.

- O que aconteceu com ele?

- Estamos no hospital. Você precisa vir aqui urgente.

- Mas o que houve?

- Vem para cá, por favor!

O coração de Estevão quase parou, a respiração ficou ofegante e um sentimento de culpa começou a crescer dele. “Droga! Meu filho... O que será que aconteceu com ele?”. Arrancou com o carro pelas avenidas razoavelmente vazias da madrugada, não se importava com a segurança ou com infrações de trânsito, queria apenas chegar logo no hospital.

Ao chegar na recepção, Luiza foi ao seu encontro com o rosto inchado e os olhos marejados.

- O que aconteceu com ele? – perguntou apavorado.

- Ninguém sabe, ele passou mal em casa depois da janta, desmaiou, ai vim correndo para cá. Os médicos não sabem o que aconteceu. – a mãe disse e desabou a chorar novamente.

- E cadê os médicos? – Estevão deixou a esposa para trás e foi em direção a um enfermeiro no saguão. – Por favor, meu filho Kauã está ai dentro. Precisamos de uma notícia.

- Aguarda um pouco aqui que vou procurar o médico e já retorno.

- Não demora, por favor.

Os dois sentaram lado a lado nas cadeiras da recepção. Enquanto ela não parava de chorar, ele resmungava que devia estar em casa com o filho ao invés de passar tanto tempo no trabalho. Dez minutos depois entrou um homem vestindo uma roupa especial e touca que os procurou.

- Com licença, vocês que são os pais do Kauã?

- Sim, sim! O que aconteceu com ele? Podemos vê-lo?

- Sinto muito, mas ele está em isolamento.

- Isolamento? Meu Deus do céu!

- O que houve, doutor?

- Aparentemente ele foi infectado por um parasita que transmitiu uma bactéria que atacou o seu sistema imunológico. Achamos que ele desenvolveu uma variação raríssima de gripe, e devido a sua baixa resistência acabou ficando muito debilitado.

- Mas como pode ser possível? A poucas horas ele estava brincando normal. De repente caiu doente.

- E... Qual o tratamento? O que vocês vão fazer?

- Infelizmente ainda não temos uma medicação específica para esse caso. Temos que aguardar e observar até a manhã pelo menos.

- Mas ele não corre risco?

- Corre sim, mas não temos mais nada a fazer, senhora.

Luiza voltou a chorar copiosamente apoiada no peito do marido que não sabendo o que dizer apenas a abraçou.

As três da manhã os dois permaneciam acordados na base de café. Não tinham notícias do filho, ninguém aparecia e quando pediam informações ninguém estava autorizado a dá-las. Até que de repente, cinco ou seis pessoas vestidas de branco passaram correndo pela porta da UTI.  Apavorado, Estevão foi tentar saber o que estava acontecendo e chegou a invadir a ala proibida, sendo barrado por um funcionário.

- O senhor não pode entrar aqui.

- Mas eu preciso saber do meu filho!

- Vou verificar e já retorno.

Angustiado, ele esperou na porta, olhando pelo vidro e acompanhando parte da movimentação que acontecia ali dentro. Conforme o tempo passava a angústia só aumentava e a agonia de não saber o que estava acontecendo deixava o casal cada vez pior. De repente o médico voltou com um semblante abatido.

- O estado dele piorou bastante nas últimas horas. Tivemos que fazer alguns procedimentos para tentar contornar mas não sabemos se ele vai aguentar.

- O que? Mas o senhor disse que colocaria ele em observação até amanhã.

- Sim, mas por algum motivo ele piorou muito rápido. Eu sinto muito.

Enquanto Luiza caia em prantos no chão, o médico informava que os liberaria para verem o filho, mas apenas pelo vidro do quarto.

Ali, observando o garotinho de apenas quatro anos, indefeso, fraco, totalmente dependente dele, tendo de lutar sozinho pela própria vida, Estevão refletiu o que estava fazendo com sua família. Havia alcançado tudo o que queria na carreira, mas perdia o crescimento do filho, não era um esposo presente e apenas colocava o dinheiro em casa. Descobriu ali que suas prioridades não estavam certas. O que realmente importava estava indo embora, enquanto aquilo que menos valia ocupava todo o seu tempo. Se o dinheiro pudesse comprar a cura de seu filho, com certeza o faria. Mas isso não era possível. Resolveu, então, fazer a única coisa ao seu alcance, por mais que não fosse muito sua praia fazê-lo: orar. Não sabia nem como começar, mas tentou assim mesmo.

“Eu sei que não sou muito bom com essas coisas e que o Senhor talvez esteja decepcionado comigo, porque te deixei de lado durante todo esse tempo, mas eu estou aqui por causa do meu bebê. Eu não sei o que ele tem, talvez só você saiba. Ele é uma criança... Por favor, cuida dele, faz por ele tudo que eu não pude ou que eu simplesmente não fiz...”

Cansado e abatido, Estevão retornou para o saguão e sentou-se na poltrona observando a movimentação que começava a acontecer com o raiar do dia. Então, um homem, vestindo terno e gravata, identificando-se como chefe do hospital foi até ele:

- Bom dia. Gostaria de informa-lo que está chegando um médico especialista no caso do seu filho. Ele vem de muito longe e assim que ficou sabendo se prontificou a vir ajuda-lo. Ele tem um trabalho excepcional na medicina.

- Sério? Isso é de verdade?

- Sim. Talvez agora o menino tenha uma chance real de sobreviver.

Não podendo se conter de alegria, o pai levantou-se e foi ao quarto de Kauã dar a boa notícia a sua esposa, mas a encontrou cochilando na cadeira em frente ao vidro do quarto. Ao virar para o menino, porém, percebeu que ele estava tendo convulsões na cama e algumas pessoas vinham correndo atendê-lo. Com o barulho Luiza acordou e se apavorou vendo o filho sendo segurado e medicado a força.

Ao saírem, o médico disse que a única esperança era o doutor que chegaria em breve. Mas ele precisava chegar rápido. Estevão iniciou uma busca implacável a esse profissional. Foi na recepção, na segurança, no chefe da enfermaria, nos plantonistas mas ninguém sabia exatamente de onde ele era e nem o seu nome, tinham apenas a referência de que era um dos melhores médicos do país e estava disposto a cuidar do caso de Kauã.

Por não saberem de onde vinha, também era impossível prever que horas chegaria, o que só aumentava a aflição. Luiza já havia tomado dois calmantes enquanto o próximo provavelmente fosse para o marido que estava cada vez mais apreensivo. O relógio da parede marcou nove, dez, onze horas e nada. O menino continuava dormindo, mas a qualquer momento podia ter uma piora. Quando, sem alarde nenhum, entrou um rapaz moreno, com óculos, bigode e cavanhaque. Ele usava um terno marrom e foi em direção à UTI. Ao passar pela porta, porém, ele parou, virou-se e caminhou até o casal abrindo-lhe um largo sorriso branco e estendendo a mão.

- Olá! Eu sou o médico que veio examinar seu menino.

- Até que fim o senhor chegou! Por favor, faça o possível, cobre o que quiser, mas salva ele, por favor...

- Estevão, o dinheiro não é nada na vida, nada.  – respondeu mansamente sem perder o sorriso.

Outro tumulto tomou conta da recepção, agora um dos médicos do hospital veio ao encontro deles, chamou o recém-chegado de lado e disse algumas coisas que o fizeram fechar a cara.

- O que aconteceu? O que houve? – perguntou Estevão angustiado.

- Eu sinto muito... – respondeu o médico do hospital.

Os dois se desesperaram, gritavam e choravam apoiados um nos outros.

- Por que o senhor não veio antes? Poderia ter salvo nosso filho. – desafiou o pai.

- Não teria feito diferença vir agora ou antes. O que aconteceu não vai mudar em nada o meu trabalho.

- Do que você está falando?

Ele voltou a sorrir, virou-se e foi em direção ao quarto, seguido por Estevão e a esposa.

Ao chegar, ele colocou a roupa especial, foi em direção ao menino, sentiu seu pulso, ajustou os aparelhos e pôs as mãos em sua cabeça. Pelo vidro, os pais e os médicos da unidade acompanhavam o que se passava ali dentro. Sem entenderem, e sorrindo, viram Kauã acordar, sentar-se na cama e dá um tchau para eles. A mãe entrou correndo para abraça-lo enquanto os médicos se perguntavam o que houve. Eles atestaram a morte a poucos minutos. Mas no meio da euforia o homem que o curou desapareceu.

Alguns dias depois, totalmente recuperado e em casa, durante o jantar, Estevão que acabara de mudar para outro emprego, onde trabalhava menos, comentou com Luiza como queria encontrar novamente aquele médico e perguntar o que ele fizera para trazer seu filho de volta a vida. De repente a campainha tocou e Kauã foi atender. Era aquele rapaz moreno, com a mesma roupa, cavanhaque e bigode.

- E ai amigão! Como você está?

- Ótimo!

Os pais vieram à porta e mal puderam acreditar no que viam.

- Como é possível, como o senhor veio parar aqui?

- Precisava vir até aqui, conversar com vocês.

- Seja bem vindo! E, a propósito, naquele dia você sumiu e nem se apresentou. Qual o seu nome?

Com o seu habitual sorriso, respondeu:

- Meu nome é Jesus. Será que posso entrar?

- É um prazer recebe-lo em nossa casa, Jesus. Por favor, fique a vontade.

E daquele dia em diante, aquela família nunca mais foi a mesma.